O que sou toda a gente é capaz de ver;
Mas o que ninguém é capaz de imaginar é até onde sou e como

Miguel Torga

quarta-feira, 27 de junho de 2007

Já gastámos as palavras pela rua, meu amor,
e o que nos ficou não chega para afastar o frio de quatro paredes.
Gastámos tudo menos o silêncio.
Gastámos os olhos com o sal das lágrimas,
gastámos as mãos à força de as apertarmos,
gastámos o relógio e as pedras das esquinasem esperas inúteis.
Meto as mãos nas algibeiras e não encontro nada.

Antigamente tínhamos tanto para dar um ao outro;
era como se todas as coisas fossem minhas: quanto mais te dava mais tinha para te dar.
Às vezes tu dizias: os teus olhos são peixes verdes.
E eu acreditava. Acreditava, porque ao teu lado todas as coisas eram possíveis.
Mas isso era no tempo dos segredos, era no tempo em que o teu corpo era um aquário,

era no tempo em que os meus olhos eram realmente peixes verdes.
Hoje são apenas os meus olhos. É pouco mas é verdade, uns olhos como todos os outros.
Já gastámos as palavras.

Quando agora digo: meu amor,já não se passa absolutamente nada.
E no entanto, antes das palavras gastas,
tenho a certeza de que todas as coisas estremeciam só de murmurar o teu nome no silêncio do meu coração.
Não temos já nada para dar.

Dentro de ti não há nada que me peça água.
O passado é inútil como um trapo.
E já te disse: as palavras estão gastas.
Adeus.

Eugénio de Andrade

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